O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defendeu nesta terça-feira (5) que o aborto seria “uma questão de saúde pública” a que “todo mundo teria direito”
A opinião do político não é novidade, mas até agora não estava sendo mencionada pela tentativa do PT de se aproximar de eleitores cristãos, principalmente evangélicos. As declarações foram feitas durante o debate “Brasil-Alemanha – União Europeia: desafios progressistas – parcerias estratégicas”, realizado pela Fundação Perseu Abramo, ligada do Partido dos Trabalhadores (PT), e a Fundação Friedrich Ebert, uma entidade alemã.
Segundo Lula, no Brasil as mulheres pobres “morrem tentando fazer aborto, porque é proibido, o aborto é ilegal”, já as que têm dinheiro fariam a interrupção da gravidez em outros países. “Aqui no Brasil não faz (aborto) porque é proibido, quando na verdade deveria ser transformado numa questão de saúde pública, e todo mundo ter direito e não ter vergonha. Eu não quero ter um filho, eu vou cuidar de não ter meu filho, vou discutir com meu parceiro. O que não dá é a lei exigir que ela precisa cuidar”, disse.
Lula também criticou as pautas relacionadas à família, que seriam retrógradas. “Essa pauta da família, pauta dos valores, é uma coisa muito atrasada. “A sociedade evoluiu muito, os costumes evoluíram muito e precisamos ter coragem para fazer esse debate”, finalizou.
As declarações geraram repúdio de lideranças. A ex-ministra da Mulher, Damares Alves, usou as redes sociais para criticar o posicionamento de Lula. “A pauta do ex-presidente sempre foi a cultura da morte. Observem que ele hoje está defendendo o aborto, e amanhã ele com certeza defenderá a eutanásia e depois a eugenia. Eles abraçam e defendem uma pauta que jorra sangue”, escreveu ela.
Uziel Santana, fundador e ex-presidente da Associação nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) também lamentou as afirmações. “As declarações do ex-presidente Lula retratam o valor que ele atribui à vida e à família. Ele, de fato, é o maior ícone da chamada ‘cultura da morte’ no país, como já sabemos. Em vez de cometer os mesmos erros do passado, o ex-presidente deveria apresentar soluções para o problema da gravidez precoce, da violência contra a mulher. Alguém precisa atualizá-lo sobre os movimentos pró-vida em todo mundo que hoje pregam que ‘as duas vidas importam’, a da mulher e a do bebê não nascido”, disse.
Discurso pré-eleitoral tende a fragilizar estratégia do PT de se aproximar de eleitores cristãos
As falas do ex-presidente, que é pré-candidato à presidência da República, dão o tom do discurso que deve ser colocado em prática pelo PT durante a campanha eleitoral. Tais declarações, no entanto, tendem a fragilizar as tentativas do partido de se aproximar de eleitores cristãos, majoritariamente contrários não só à defesa do aborto, mas também a outras pautas “progressistas” defendidas pelo petista, como a ideologia de gênero e a legalização das drogas. Desde o final de 2021, o partido busca criar estratégias para cooptar eleitores católicos e evangélicos. Os eleitores evangélicos representam cerca de 31% do total de votos.
Como um dos primeiros passos da estratégia, em novembro de 2021 Lula organizou um encontro virtual com comunidades evangélicas, no qual creditou a sua chegada à Presidência “à mão de Deus”. “[O PT] é um partido que não pode acreditar na história de que os evangélicos e as evangélicas são como se fosse um gado, são tangidos por aqueles que querem mentir. O que a gente percebeu nesse encontro é que as pessoas têm cabeça, que as pessoas têm inteligência”, disse o ex-presidente durante o encontro.
Recentemente, o partido também decidiu criar um podcast direcionado ao público evangélico com foco em atrair as camadas mais jovens das igrejas, cujo apresentador do programa será o Paulo Marcelo Schallenberger, que já foi preso em 2014 por posse de drogas e porte ilegal de armas.
Defesa de Lula ao aborto é antiga
Não é novidade que Lula, assim como o PT, sejam favoráveis à legalização do aborto. Em um Congresso de 2007, o partido aprovou oficialmente a “defesa da autodeterminação das mulheres, da descriminalização do aborto e regulamentação do atendimento a todos os casos no serviço público evitando assim a gravidez não desejada”.
Nos dois mandatos em que foi presidente do Brasil, Lula trabalhou alinhado com essa diretriz. Uma das primeiras medida de seu governo diretamente relacionada com a prática do aborto foi uma portaria do Ministério da Saúde promulgada em 2005 regulamentando a justificação e autorização para o aborto em caso de gravidez decorrente de estupro. Antes da portaria, era exigido que a mulher apresentasse um boletim de ocorrência para poder iniciar o processo no sistema de saúde. Com a portaria, passou a ser solicitado apenas que a mulher fizesse um relato circunstanciado do estupro para poder realizar o aborto em uma unidade hospitalar.
Naquele mesmo ano, outra portaria, desta vez da Secretaria Especial de Política para as Mulheres (SPM), subordinada à presidência da República, instituiu a Comissão Tripartite “para discutir, elaborar e encaminhar proposta de revisão da legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez”.
A Comissão Tripartite finalizou seus trabalhos em 1º de agosto de 2005 e apresentou, em setembro, um anteprojeto de lei que previa a “realização legal do aborto, por decisão das mulheres, em gestações de até 12 semanas, e com até 20 semanas se a gravidez fosse resultante de violência sexual”.
O posicionamento da gestão Lula em relação ao aborto também ficou claro no Segundo Relatório Brasileiro sobre o Tratado de Direitos Civis e Políticos, enviado pelo governo ao Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), também no ano de 2005. Um dos trechos do documento diz que “o atual governo assumiu o compromisso de rever a legislação repressiva do aborto, para que o princípio da livre escolha no exercício da sexualidade possa ser plenamente respeitado”.
No Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH3), lançado por Lula em 2009, havia expressamente um item prevendo que o governo apoiaria “aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos”.
Na época, havia diversas propostas de lei visando a legalização do aborto no país, vários de autoria de parlamentares petistas, como a do então deputado José Genoino (PT-SP), que previa a descriminalização da prática do aborto para as mulheres com até 12 semanas de gestação e permitia a prática nos casos de má-formação do bebê.
O item do PNDH3 causou muita polêmica, sendo criticado pelos setores pró-vida. O desgaste com a proposta foi tão grande que o próprio governo acabou modificando o texto. Em maio de 2010, o trecho foi alterado para “considerar o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde”.